segunda-feira, outubro 02, 2006

O que está em causa

02/10/2006

O que está em causa

Os adversários de Lula e do povo neste 2º turno serão os senhores do poder econômico, que controlam a maioria dos meios de comunicação. Esses tradicionais donos do Brasil farão de tudo para impedir a continuidade do processo de construção de uma nova cidadania no país.

Mauro Santayana

Como é bom manter a prudência, devemos esperar o encerramento das apurações, a fim de saber se o presidente Lula será ou não eleito no primeiro turno, neste domingo. Discutia-se, sexta-feira, se ele fez bem, ou não, em comparecer ao debate realizado nos estúdios da maior emissora de televisão do país. Todas as decisões desta natureza são arriscadas. Se Lula comparecesse, perderia; se não comparecesse, perderia também.

Se comparecesse, estaria confrontando-se a uma coligação ocasional de todos os outros candidatos com o propósito de o acossar. Foi uma decisão pessoal, como pessoal foi a decisão de Aécio Neves em não comparecer ao debate com seu adversário Nilmário Miranda. Tanto assim que o governador de Minas, ao ser interpelado pelos jornalistas, disse que Lula agira de acordo com sua consciência, e deve ser respeitado em sua decisão.

Os candidatos que se encontram bem colocados nas pesquisas costumam esquivar-se desses confrontos, que nada podem acrescentar ao seu desempenho. Relembre-se que Fernando Henrique também não compareceu a debates para os quais foi convidado. Mas não foi em razão disso que Lula deixou de comparecer. Com certeza ele ganharia o debate, já que dispõe de números contra o desempenho de seus opositores - por oito anos no governo federal, e por doze anos no Estado de São Paulo - que os esmagaria.

Mas Lula parece preocupado com a governabilidade do País, e não desejar que o clima de confronto chegue a um ponto sem volta, como querem, entre outros, Fernando Henrique. Para o ex-presidente, hoje gozando do ócio, o dilúvio seria a glória.

Mais do que o debate em si, o que alguns de seus conselheiros temiam era a edição da matéria pelos noticiários da televisão. Lembro-me, e muito bem, do que foi o debate de 1989, entre o atual presidente e Fernando Collor, pela Rede Globo. Assisti ao debate em companhia de Pimenta da Veiga – que então apoiava Lula – e ambos, veteranos no acompanhamento dos fatos políticos, concluímos que Lula havia vencido a disputa, não obstante as terríveis pressões emocionais daquelas horas.

Mas, no dia seguinte, a versão do debate, com sua edição, depois confessadamente manipulada por conhecidos jornalistas da emissora, fez do claro, escuro, ao suprimir frases, desviá-las de seu contexto, explorar as imagens, cortá-las, mesclá-las. Lula foi visto como um pobre coitado, acabrunhado, diante de um Collor flamejante, inteligente e – quem diria? - irretocável moralista. Essa manipulação foi decisiva para que Lula perdesse aquela eleição.


Ficou muito claro, nesta etapa final da campanha, que os inimigos não descansam, nem mandam flores. Os tucanos, que não explicaram, nem nunca explicarão o que fizeram do patrimônio nacional, nem os casos conhecidos e evidentes de corrupção e de desvio de dinheiro do Estado, durante os oito anos de Fernando Henrique, valem-se de episódios, ainda não muito esclarecidos, que estão sendo investigados pela Polícia Federal, por iniciativa do próprio governo, para tentar desmoralizar o atual Presidente da República.

Já é notório que todos os casos clamorosos ocorridos no âmbito do Ministério da Saúde começaram no governo anterior, tanto assim que a imensa maioria das ambulâncias superfaturadas foram fornecidas pela Planam antes do atual mandato, e que o maior número de prefeituras envolvidas (128) eram, ou são, do PSDB.

O mais grave foi a violação do segredo de justiça e a divulgação das fotos do dinheiro apreendido (cuja origem ainda não foi identificada). Confirmou-se, no episódio, o facciosismo do TSE, ao permitir essa divulgação, com notórios fins de confusão da opinião pública, além de haver notificado apenas uma parte dos envolvidos, preservando os ligados ao PSDB, como o Sr. Abel Pereira.

Lula cometeu erros políticos lamentáveis ao imaginar que a vitória de há quatro anos era sobretudo a de seu grupo do ABC, aos quais se juntaram, em sua ascensão política, recém-chegados de todas as procedências. É provável que se tenha dado conta de que seus eleitores não são os sindicalistas do ABC, mas, sim, os injustiçados e oprimidos do Brasil inteiro.

Além disso foi compelido, pela necessidade de obter maioria parlamentar, a aliar-se a determinados partidos, alguns deles chefiados por personalidades controvertidas. O PT, sempre conturbado por divisões internas, não planejou, estratégica e taticamente, sua ação político-eleitoral nestes quatro anos de poder. E planejamento foi o que não faltou aos seus adversários.

Por isso eles puderam organizar-se, mantendo a iniciativa para solapar o governo e corroer, em tudo o que puderam, o prestígio do Presidente junto à classe média – já que atingir a população mais pobre, e diretamente beneficiada pelo Presidente, era mais difícil.

Assim, tendo em vista os seus objetivos essenciais, o que os tradicionais donos do Brasil, não queriam admitir, e tudo farão para impedir, é o processo, que se intensifica, de construção de uma nova cidadania. Os cidadãos se fazem na mesma medida em que se libertam das peias da fome, do medo da morte, do desconforto da falta de assistência médica digna, do terror de sair de casa de madrugada, em busca do ônibus que o levará ao trabalho, ser assaltado e, muitas vezes, morto, pelo próprio vizinho da favela em que reside.

Lula pensou nessa gente. Para dizer a verdade, poucos têm sido os que nela pensam. Na Presidência da República, só dois dos antecessores de Lula pensaram prioritariamente nos pobres, Vargas e Juscelino – e Vargas, façamos justiça histórica, mais do que Juscelino. Vargas, pensando nos pobres, também não descuidou da boa administração pública, instituindo o sistema de concursos que dava oportunidade a todos.

Um dos mais lamentáveis delitos sociais do passado recente foi a terceirização de serviços públicos, incluídos os da segurança, agravado durante o governo neoliberal do Sr. Fernando Henrique Cardoso. Os trabalhadores são tratados como se fossem “escravos de ganho”, do Império, que eram alugados pelos seus senhores. Tal como os escravocratas do segundo reinado, esses nouveaux riches, muitos deles com mandatos parlamentares, reúnem seus esforços contra a decisão de Lula de acabar com esse sistema odioso de exploração do trabalho.

É isso que faz a aliança de setores das elites com uma parcela alienada da classe média, que se informa pela televisão, entrega sua emoção às telenovelas e sua formação a porta-vozes do pensamento conservador, aos quais se abrem muitos dos principais meios de comunicação, no seu desesperado empenho contra Lula. Não lhes importa que a política econômica venha tendo êxito que os beneficia.

Eles não têm um projeto positivo para a nação, mas um projeto negativo, um projeto de classe. Eles esperavam, de alguma forma, que, no poder, Lula se comportasse como um cooptado, como se têm comportado muitos dos que se proclamaram esquerdistas no passado, entre eles Fernando Henrique Cardoso.

Lula, com habilidade e a intuição dos que não renegam sua classe, manteve-se no compromisso com a maioria do povo brasileiro. Sim, houve corrupção e é lamentável que tenha havido, embora comprometendo uma ínfima parcela de petistas e cifras modestas (quando comparadas com as envolvidas nos escândalos anteriores, como os das privatizações). Mas ninguém fala mais na compra dos votos para a aprovação da emenda da reeleição de Fernando Henrique.

Tampouco se fala mais na Daslu, com suas empresas fantasmas, intransigentemente defendida pelo Sr. Geraldo Alckmin, quando a Polícia Federal e os fiscais da Receita invadiram aquele templo de ostentação e humilhação aos pobres brasileiros, para ali colher provas de contrabando e sonegação tributária. Ninguém fala tampouco no rombo monumental que o ex-governador Geraldo Alckmin deixou nas contas públicas, o que transgride a famosa Lei de Responsabilidade Fiscal criada pelos próprios tucanos, e está levando o honrado governador Cláudio Lembo a esforços consideráveis para não se tornar réu de uma transgressão de seu antecessor. Mas os adversários de Lula e do povo são os senhores do poder econômico e controlam a maioria dos meios de comunicação.

Os eleitores tiveram a sua consciência esmagada pelos interessados em que o povo permaneça ignorante, oferecendo a sua mão de obra barata aos donos do poder, como os antigos servos da gleba se apresentavam aos barões da terra com a corda no pescoço. Mas, se todas essas coisas fossem conhecidas, e levassem o povo a pensar com calma, a vitória de Lula já estaria assegurada domingo.


Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976-82), de que foi colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.


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